Márcia Denser
Às vésperas das eleições, descubro um texto magnífico do mestre Florestan Fernandes, morto em 1995, um dos melhores sociólogos brasileiros contemporâneos, publicado na Folha de S. Paulo em setembro de 1994. O título? “Herança Maldita”. Reproduzo alguns trechos:
“As eleições deixam atrás de si o fogo dos interesses, das esperanças e dos sonhos que se transfiguram em euforia e desencanto. Em compensação, chocam-se pela frente com a maldição herdada do passado colonial, do escravismo e da subalternidade generalizada.
O sufrágio universal suportou distorções chocantes. Mas assustou os ricos e poderosos e acordou os oprimidos. Os primeiros, por descobrirem que perdem rapidamente uma tirania secular. Os segundos, porque, a cada volta do tempo, sentem aproximar-se o seu momento histórico decisivo.
A maioria composta por assalariados e milhões de excluídos recorre à submissão ou ao confronto, mas por sua massa poderia pulverizar o sistema que rouba, mente, divide e esmaga. Falta-lhes penetrar no enigma de suas contradições – seu poder de classe e a necessidade de assimilação com os sem-classe -, batendo-se com eles por reforma ou revolução.
Esse dilema não apresenta saídas. A menos que o presidente aprenda que servir à nação implica reconstruir a sociedade civil e o Estado. Não basta que discurse sobre desemprego, fome, ignorância, doença. Urge resolver tais problemas pela transformação do homem, da sociedade, da civilização.
É imperativo (ao presidente) vincular e incluir os de baixo à batalha política que redima o Brasil da multiplicação da barbárie, liberando-se a si mesmo junto com o povo.”
Recapitulando as propostas e a situação dos candidatos à Presidência da República em 2006, qual deles estaria mais próximo do ideal esboçado por mestre Florestan? De um lado, o presidente Lula, candidato à reeleição pela coligação PT, PCdoB e PRB, surge como favorito em todas as sondagens eleitorais.
Apesar das limitações e erros do primeiro mandato, seus eleitores mantêm a esperança de mudanças na política econômica, enxergam nele o esforço em priorizar as questões sociais, em democratizar as relações com os movimentos populares, em adotar uma política soberana diante das potências capitalistas. Todo o bombardeio da mídia e da oposição de direita, tentando cunhá-lo de corrupto, além de não colar na imagem do presidente, serviu para fazer com que a grande mídia perdesse credibilidade e seriedade, algo como uma bomba que, ao fim e ao cabo, acabou explodindo na cara dos agressores, que reiteradamente violaram (e violam) todos os princípios do verdadeiro jornalismo.
PublicidadeCada vez mais o leitor acredita menos no que vê/ouve/lê na grande mídia, e migra em massa para a internet e publicações eletrônicas à cata de formadores de opinião que não estão sujeitos à censura, nem a soldo do capital. Esse é o resultado mais palpável e comprovável da campanha anti-Lula. Seus desdobramentos? Cruzes! Inúmeros, imprevisíveis, o que deve ser terrível para os controladores de plantão.
Do outro lado, o imponderável Geraldo Alckmin, imponderável porque sua única peculiaridade, seu traço mais característico é o fato de provocar elevadíssimos índices de esquecibilidade (imaginem, após seus discursos até os próprios marqueteiros do sujeito confessam ser impossível lembrar-se do que ele acabou de dizer). No fundo, ele gostaria de fazer a linha “Aécio Neves sem filtro nem pedigree mineiro”. Mas, com aquela aura fascistóide da Opus Dei a comprometer-lhe irremediavelmente o perfil de chapinha dos empresários e banqueiros paulistanos? Impossível.
É adepto de um programa ultraliberal de governo, que conta com o apoio dos rentistas e privatistas “mudernos” do PSDB, da velha oligarquia do PFL e dos trânsfugas do PPS. A sua candidatura prega a redução do papel do Estado, com o corte nos programas sociais e a demissão de servidores públicos; a privatização de estatais, com a entrega das chamadas “jóias da coroa” (Petrobras, Banco do Brasil, CEF e as geradoras de energia); a retomada das negociações da Alca, via alinhamento automático com os EUA e o fim da diplomacia no Cone-Sul; a flexibilização trabalhista, com predomínio do negociado sobre o legislado; a criminalização dos movimentos sociais, com a ruptura do diálogo com os sindicatos e repressão dos “bandidos do MST”.
Na lanterna, Cristovam Buarque e Heloísa Helena apresentam-se como terceira via. Ambos atacam o presidente Lula e amenizam as críticas ao representante da oposição liberal-conservadora. Heloísa, do Psol, teve certa ascensão nas pesquisas, aproveitando-se da generosa exposição da mídia, mas surgem problemas nesse campo. Como definiu Emir Sader, o Psol é “um estranho casamento da eleitoralismo e ultra-esquerdismo”.
Deixo aos meus caros leitores, estas reflexões. Aos eleitores, o veredicto. E a ambos, a herança bendita do pensamento iluminado de Florestan Fernandes.
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