Marcos Magalhães*
No segundo semestre de 1986, começaram a acontecer pela noite de Brasília alguns encontros nada convencionais. Em bares, associações e até residências, eleitores que até então nem tinham chegado perto de uma urna (Brasília era uma “cidade cassada”, como dizia Tancredo Neves) começaram a se reunir com candidatos a deputados e senadores para debater propostas para o Brasil. Era o início da campanha para a Assembléia Constituinte que se reuniu a partir de 1987.
Candidatos a deputados e senadores faziam campanha em todo o país, é verdade. E o que tinha, então, Brasília de especial? Em todos os estados, as atenções estavam voltadas principalmente para as eleições de governadores. Na capital federal, que ainda não podia eleger o seu próprio governador, o assunto mesmo era a Constituinte. Quem quis participar debateu à vontade temas como as regras para a economia e o modelo de democracia a ser adotado depois de tantos anos de regime autoritário.
A Constituição brasileira vai completar 20 anos em 2008. As emendas que sofreu desde então mostram que ela tem necessitado de atualizações e aperfeiçoamentos. Ainda hoje são claramente necessárias mudanças em capítulos como o da estrutura tributária e o da distribuição de funções entre União, estados e municípios, para citar apenas dois exemplos. Ou seja, a Constituição está longe de ser perfeita, bem entendido. Mesmo assim, porém, ela tem uma face quase poética que as novas gerações nem podem supor.
Toda essa introdução nasceu da observação das mudanças constitucionais que vêm sendo promovidas por países vizinhos, como Bolívia e Venezuela. A adoção de novos textos constitucionais nesses países nasce muito mais do confronto do que da negociação.
A futura Constituição da Bolívia terá sido em parte aprovada dentro de instalações militares do país, longe do olhar vigilante da oposição ao presidente Evo Morales. Na Venezuela, um plebiscito procura garantir legitimidade a uma reforma constitucional que abre caminho à reeleição permanente de Hugo Chávez.
Pelo tipo de nascimento desses novos textos constitucionais, pode-se logo perguntar que durabilidade eles terão. Serão o roteiro para a construção democrática nesses países, ainda que naturalmente submetidas, aqui e ali, a correções e emendas? Ou servirão apenas de atalho político a dirigentes interessados em consolidar seu poder? As novas constituições vão assegurar espaço para a existência e o livre funcionamento de partidos de oposição? Ou camuflarão tendências autoritárias?
PublicidadeMuitos dos críticos da atual Constituição brasileira lembram que ela foi aprovada antes da queda do Muro de Berlim, a partir de quando começaram a ruir antigas teses nacionalistas e estatizantes. A época, porém, tinha outra característica interessante. Toda a América do Sul começava a sair de décadas de ditaduras militares, cuja existência – até certo ponto – tinha a ver com a própria Guerra Fria que começou a acabar com a queda do muro.
Naquele momento, acreditava-se muito na democracia. Apostava-se muito na construção de uma nova alternativa política, civil, aberta e pluralista. E, para isso, investia-se muito na conversa, na negociação. Cada capítulo da Constituição brasileira nasceu depois de dezenas de audiências públicas, que levaram ao Congresso Nacional representantes de índios, camponeses, fazendeiros, trabalhadores, empresários, prefeitos e ativistas do meio ambiente. Até mesmo militares de terno e gravata andavam pelos corredores em busca de apoio ao texto que consideravam mais adequado para o capítulo referente à defesa nacional.
Houve muita polêmica nos dois anos da Constituinte. Muitas decisões importantes foram tomadas em votações difíceis – como as que definiram o modelo de reforma agrária e o tamanho do mandato do presidente da República. Mas também houve muita negociação. O clima de confronto que existiu nas mais polêmicas votações ainda estava longe do prenúncio de uma ruptura política definitiva.
O momento hoje é outro. Crescem o cinismo e a desconfiança nos políticos, em toda a América do Sul. O insistente abismo entre ricos e pobres lembra a premência do combate à desigualdade e à pobreza. E abre-se espaço para atalhos institucionais que podem colocar em risco o próprio futuro da democracia na região. Cada país é um país e não há um modelo a ser seguido. Mas, se há uma virtude no imperfeito e inconcluso processo constituinte brasileiro, esta é a sua aposta em mais negociação e menos confronto.
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