Por Cirilo Tissot *
A comunidade de especialistas em tratamentos de viciados em drogas está atenta ao esforço de autoridades da saúde pública em levar tratamento médico aos milhares de dependentes em crack da capital paulista. O apoio obtido na Justiça para a internação compulsória dessas pessoas inflama a questão, especialmente numa sociedade que, até agora, tem-se mostrado avessa a quaisquer medidas que impõem ações contra a vontade de outrem.
Numa análise estritamente clínica dos fatos, o ponto chave da medida é a disposição conjunta da prefeitura e do estado em assumir que o problema existe e que está sob sua responsabilidade a aplicação de soluções. E isto independente dos incidentes de segurança pública responsáveis pelas ações que tentam resgatar a ordem numa região da cidade.
Leia também
Assim, é muito importante compreender e aceitar que a gestão pública já vinha cuidando do conjunto de cidadãos em estado permanente de adição a drogas na área. Uma série importante de protocolos sociais e médicos foram aplicados, muito provavelmente com resultados aquém do desejável e a geração de outros problemas que põem em risco a vida dos usuários de crack. Portanto, como em qualquer tratamento, chegou-se ao estágio em que se faz necessária a adoção de medidas mais firmes, previstas nos protocolos médicos e na legislação pertinente.
Nas relações privadas, cabe aos médicos avaliar a situação do paciente diante do tratamento e expor à família a necessidade da medida de internação, inclusive a internação involuntária e compulsória. Na esfera pública, a mesma missão cabe aos responsáveis pela saúde pública. Numa interpretação bem ampla, o direito de consumir drogas até à morte dentro de sua casa, não se espelha na rua, à frente de todos. Pior, ainda mais quando psiquiatras e demais conhecedores do tema têm plena ciência da profunda perda de autocontrole que o ser humano atinge nas condições de consumo ininterrupto de drogas.
A questão do tratamento de drogas está diretamente ligada à uma visão de suicídio e eutanásia em detrimento de tentar manter a vida ao máximo custo. Feitas estas considerações, é importante termos muito claro os cinco desafios que os profissionais da saúde envolvidos para lidar com o tratamento em internações compulsórias terão pela frente para obterem sucesso na iniciativa.
Primeiro, tempo para uma mínima desintoxicação orgânica, que numa visão mais comum duraria cerca de 40 dias. Mas, a ciência tem demonstrado que as grandes mudanças e efeitos no cérebro humano ocorreriam em cerca de três meses de abstinência e isto, certamente, envolve consequências claras da vontade do indivíduo sobre si. A partir de recursos para cuidar dos efeitos decorrentes da ausência da droga, este período é essencial para o paciente recuperar o mínimo domínio da cognição para saber quem já foi, quem é agora e que pode escolher como será seu futuro. Portanto, a questão importante será a capacidade do paciente em, ao desenvolver a cognição, estabelecer um pensamento crítico sobre a condição de sua doença.
Segundo, acesso a terapias, de forma contínua, que permitam uma mínima reordenação social. Em verdade, ninguém para de usar drogas pelos problemas decorrentes do vício, mas sim por acreditar que a vida será certamente melhor sem o consumo de drogas ou álcool. Logo, a questão está ligada diretamente aos valores que permitem ao dependente químico enxergar uma vida mais satisfatória.
Terceiro, ter-se consciência de que a compulsão que faz alguém tornar-se adicto a drogas passa muito longe de tragédias pessoais. Na verdade, está colado numa realidade comprovada por experiências clínicas: o consumo de drogas é o encontro com o prazer imediato. Um estágio de nirvana permanente. A busca por um estado de euforia sem fim.
Quarto, os pacientes poderão sofrer recaídas num período dentro dos próximos seis meses a partir do momento em que tiveram a proposta de parar o consumo de substâncias químicas. Não serão todos que terão recaídas, mas a probabilidade daqueles que recaem já nos seis primeiros meses é de 75%.
Quinto, o recuperado do vício precisara tornar-se um vigilante de si mesmo. Ter acesso a tratamento psicológico capaz de lhe mostrar a importância de se afastar do ambiente que lhe encaminhou ao vício. Muitas vezes isso significa se afastar de coisas que vão além das ruas. Compreende estar à distância dos amigos e, às vezes, da própria família.
Diante dos estímulos da vida, uma pessoa pode encontrar dificuldades de responder de forma satisfatória aos obstáculos. O elemento fundamental será a postura que adotar para ter comportamentos construtivos em detrimento da busca por euforia, excitação ou anestesiamento dessas dificuldades a todo custo. Independentemente do tamanho do desafio e de sua intensidade, o tempo, a condição mais importante no tratamento da dependência química, é necessário. Pois é preciso de tempo para realizar todas essas transformações, bem como o imprescindível apoio dos membros da família, da sociedade, dos meios de saúde, para poder trazer essas pessoas engajadas em sair da Cracolândia.
* Médico psiquiatra especialista em dependência química e diretor técnico da Clínica Greenwood.
Deixe um comentário