Com o vácuo deixado pelo Congresso Nacional, onde os 18 projetos sobre o tema não andam e onde jamais houve um parlamentar que assumisse ser gay, os homossexuais têm recorrido à Justiça para reivindicar os seus direitos. No início do mês, o corregedor-geral da Justiça no Rio Grande do Sul, desembargador Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, determinou que os cartórios de todo o estado recebam documentos atestando a união estável de casais homossexuais.
O parecer foi incluído na Consolidação Normativa Notarial Registral, que rege a atuação dos cartórios. Com a documentação em mãos, os parceiros terão mais facilidade para exigir participação na partilha de bens, sucessão em caso de morte, pensões e guarda de crianças. A decisão do tribunal gaúcho é mais um episódio em que a ausência de legislação específica sobre o assunto é suprida pela jurisprudência.
Na retaguarda
“O Legislativo brasileiro tem sido mais conservador do que o Executivo e o Judiciário. O Congresso, nesse caso, não age como uma vanguarda, mas como retaguarda”, critica o deputado Fernando Gabeira (sem partido-RJ).
Segundo levantamento dos movimentos ativistas, a discriminação com base na orientação sexual está proibida e sujeita à multa nas Leis Orgânicas de cerca de cem dos 5,6 mil municípios brasileiros. A punição também está prevista na Constituição estadual de três estados.
Entre as 18 proposições que de alguma forma se referem aos casais homossexuais, quatro prevêem sanções para quem cometer qualquer tipo de discriminação por causa da orientação sexual do cidadão. Em todo o mundo, cinco países incluíram na Constituição Federal a proibição à discriminação baseada na orientação sexual: Canadá, Equador, Fiji, África do Sul e Suíça.
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No ano passado, decisão da mesa-diretora da Câmara irritou membros das bancadas evangélica e católica. A medida garantiu a um servidor o direito de incluir seu parceiro como dependente no plano de saúde da Casa. O caso abriu caminho para que a Radiobrás estendesse a prerrogativa, de maneira inédita, a todos os seus servidores. A garantia de levar esse direito a todos os casais homossexuais brasileiros está prevista no Projeto de Lei 2383/03, da deputada Maninha (PT-DF).
Outro órgão federal, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), também reconheceu este ano, em Curitiba e Salvador, o contrato civil de união como documento válido para a concessão de pensão no caso de morte de parceiros homossexuais, depois de iniciativa do Grupo Gay da Bahia. O registro é gratuito e deve ser reconhecido por cinco testemunhas e firmado em cartório.
Em janeiro deste ano, o Instituto de Previdência do Município de São Paulo (Iprem) reconheceu a união estável de duas mulheres que viveram juntas por quase 20 anos. Com a morte de uma delas, o órgão garantiu o pagamento de pensão à parceira. O instituto levou em consideração que as duas mantinham conta conjunta há mais de dez anos e haviam comprado imóveis juntas.
O caso não chega a ser inédito porque, em 2001, sentença federal obrigou o INSS a pagar pensão a viúvos e viúvas homossexuais no Rio Grande do Sul. O caso abriu jurisprudência para que parceiros do mesmo sexo pudessem ser considerados dependentes preferenciais dos companheiros segurados da Previdência.
Ainda naquele ano, o Rio Grande do Sul reconheceu, pela primeira vez no país, uma relação homossexual como entidade familiar ao garantir a partilha dos bens após a morte de um deles. A decisão havia sido contestada pela filha adotiva do casal, que entrou na Justiça reivindicando o direito aos bens deixados pelo parceiro que a havia registrado. O juiz considerou que os dois haviam estabelecido uma sociedade de fato ao longo de 30 anos de relacionamento.
Pais e filhos
Enquanto a jurisprudência facilita a partilha de bens e o reconhecimento de direitos entre pessoas do mesmo sexo, outro ponto polêmico avança de maneira mais tímida: a possibilidade de adoção de crianças por casais homossexuais. “Se enfrentamos resistência no Congresso para instituir o Dia Nacional do Orgulho Gay, imagine para aprovar propostas que mexem mais diretamente com os princípios religiosos dos parlamentares”, observa a deputada Laura Carneiro (PFL-RJ).
O Projeto de Lei 5252/01, do deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), é a única proposta que trata do assunto em tramitação no Congresso. Inspirado no modelo francês, o chamado Pacto de Solidariedade entre as Pessoas enfrenta mais resistências do que o mais famoso dos projetos relacionados à temática, o PL 1151/95, da atual prefeita de São Paulo, Marta Suplicy (PT). É que, ao contrário da parceria civil, o pacto não parte de critérios sexuais, refere-se simplesmente à relação entre duas pessoas.
Enquanto o Congresso não estabelece critérios para disciplinar a criação de crianças por casais do mesmo sexo, o Judiciário tem se manifestado sobre o assunto. Em 2002, a Justiça do Rio de Janeiro, em decisão inédita, determinou que Maria Eugênia Vieira Martins, companheira de Cássia Eller por 14 anos, ficasse com a guarda do filho biológico da cantora. Geralmente, nessas circunstâncias, a criança é entregue aos cuidados dos avós maternos. Os protestos do avô do garoto de nada adiantaram.
Ainda naquele ano, um juiz mineiro negou o pedido da mãe biológica que pedia a retomada da guarda do filho, criado pelo pai e o novo parceiro. A versão atual do projeto da ex-deputada Marta Suplicy veda expressamente a adoção, tutela ou guarda de crianças e adolescentes em conjunto, mesmo que sejam filhos de um dos parceiros. A mudança foi acatada pela Comissão de Constituição, Justiça e Redação durante as negociações com as bancadas católica e evangélica no Congresso para que o texto fosse aprovado.