Em 2016, de um universo de 2.769 proposições que passaram ou ainda tramitam no Congresso referentes ao tema da criança e do adolescente, apenas 12 foram sancionadas pela Presidência da República e, consequentemente, viraram lei. Outras 11 foram arquivadas. Ou seja, os números mostram que menos de 1% daquele conjunto de matérias teve tramitação concluída pelos parlamentares no ano passado.
Os dados constam de um monitoramento feito entre janeiro e dezembro de 2016 pela Fundação Abrinq, entidade sem fins lucrativos voltada para a defesa de crianças e adolescentes. As conclusões do levantamento estão reunidas no Caderno Legislativo da Criança e do Adolescente – Agenda Prioritária em 2017, publicação a ser lançada nesta terça-feira (16), às 10h, em um hotel de Brasília a cerca de três quilômetros do Congresso. Foram convidados para o lançamento parlamentares e a secretária nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Cláudia Vidigal.
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Segundo a entidade, são diversos os problemas acerca da pauta legislativa referente ao tema da criança e do adolescente – lentidão no trâmite das proposições, inadequação formal dos projetos, “vícios de inconstitucionalidade” e demais situações em confronto com a lei etc. Para a administradora executiva da Fundação Abrinq, Heloisa Oliveira, trata-se de um caldeirão de mazelas que também reúne fatores como o alto número de propostas apresentadas, a baixa qualidade da produção legislativa e a falta de foco dos congressistas nas prioridades relativas à questão.
“Queremos fazer essa reflexão: é razoável que apenas 1% do que tramita na duas Casa relacionado à criança e ao adolescente chegue ao final da tramitação? O que está errado? Por que 99% das matérias em tramitação ficam paradas?”, questiona a administradora executiva da Fundação Abrinq, Heloisa Oliveira, também porta-voz da entidade, em entrevista ao Congresso em Foco.
Para Heloisa, nesse universo de iniciativas sem efetividade, matérias importantes ficam de fora da apreciação dos parlamentares. “A gente tem um volume de produção legislativa muito alto – em nossa avaliação, talvez não precisasse haver tantas propostas de mudanças em lei. Algumas delas são tão parecidas umas das outras que acabam sendo apensadas. Há casos em que uma mesma proposta tem mais de 50 outras tramitando em conjunto, porque tratam do mesmo tema”, denuncia.
O Caderno Legislativo tem entre seus principais objetivos o monitoramento de proposições de deputados e senadores que podem afetar a vida de uma população de indivíduos entre 0 e 17 anos (veja cinco exemplos abaixo e a opinião da Abrinq sobre eles). “Pretendemos mobilizar a sociedade e os nossos parlamentares para o debate em torno dos principais desafios nacionais, a fim de construirmos marcos legais efetivos e inovadores para a criança e o adolescente no Brasil”, diz o presidente da Fundação Abrinq, Carlos Tilkian.
Afrontas ao ECA e à Constituição
O cenário de descaso legislativo é ainda mais preocupante quando se analisam números que também consideram as matérias protocoladas na Câmara e no Senado até este mês de maio – nesse caso, sobre para 3.010 as proposições relativas ao tema da criança e do adolescente. No portal Observatório da Criança e do Adolescente (veja vídeo abaixo), mantido pela Abrinq, há um bando de dados com informações sobre todas elas. Na seção “Agenda Legislativa”, a entidade exibe seu posicionamento sobre cada uma dessas matérias, que pode ser “bandeira verde” (favorável), “bandeira vermelha” (desfavorável) e “bandeira amarela” (favorável com ressalvas).
“Um em cada três projetos não está de acordo com a defesa integral dos direitos da criança e do adolescente no Brasil”, observa a Abrinq, apontando em alguns deles retrocessos em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) a à própria Constituição, bem como a ausência total de inovação para a legislação em vigência.
A entidade considera que a crise política, que recorrentemente impede o avanço na pauta legislativa, tem prejudicado a discussão das propostas referentes ao assunto. Em 2015, período compreendido entre a eleição presidencial de 2014 e o impeachment da presidente Dilma Rousseff, concluído em 31 de agosto do ano passado, das 1.486 proposições monitoradas pela Abrinq apenas uma foi sancionada e outras 14 arquivadas.
No ano eleitoral, quando Dilma foi reeleita para um mandato que não concluiria, causou estupefação nos membros da entidade o fato de que apenas um projeto teve tramitação concluída para cada 100 proposições postas em tramitação.
Risco ao Fundeb
Heloisa diz que os parlamentares estão muito mais comprometidos com interesses pessoais do que com as demandas urgentes da sociedade. “Por exemplo: a regulamentação do sistema nacional de ensino, que é uma exigência do Plano Nacional de Educação, está tramitando a passos de tartaruga. A constitucionalização do Fundeb (Fundo Desenvolvimento da Educação Básica) é um tema extremamente importante – isso está tramitando em uma proposta de 2015. O Fundeb é o mecanismo de financiamento da educação básica no Brasil, mas ele tem data para acabar. Se ele não for transformado em um mecanismo constitucional até a data de sua extinção, que está definida em lei, como vai ser o financiamento da educação? A gente pode entrar em um colapso”, adverte.
Para Heloisa, os parlamentares também estão mais preocupados em remediar do que em prevenir, o que reflete a falta de visão adequada do Congresso a respeito da assistência à criança e ao adolescente. Segundo a especialista, esse descompasso do Parlamento em relação à realidade dessa população “é muito marcante”.
“Uma outra coisa que chama a nossa atenção é que grande parte das propostas trata de questões relacionadas ao que a gente chama de proteção, e a maioria delas tem foco muito mais no efeito do que na causa. Por exemplo: a maioria das propostas relacionadas ao adolescente trata de criminalização, de internação por mais tempo, de redução da maioridade, de reduzir a idade do trabalho, de permitir divulgação de imagem. E nenhuma menção a profissionalização, a prevenção de evasão escolar, a garantia de escolaridade completa, porque a escolaridade básica definida por lei, hoje, é até o ensino médio”, observa.
Heloisa diz ainda que o excesso ou a inadequação das propostas é decorrência da ausência ou deficiência de políticas públicas já postas. “Às vezes, para resolver os problemas de uma política que não funciona, que não é efetiva – pelo menos para todo o país e para todas as classes sociais –, você faz uma mudança na lei. E uma nova lei não preenche o vazio de uma política”, destacou, acrescentando que também não adianta a concepção de políticas sociais sem que haja garantias orçamentárias que lhes tornem efetivas.
Desperdício de qualidade
Algo que também chamou a atenção da porta-voz da Abrinq é o fato de o corpo técnico do Senado e da Câmara ser reconhecido pela alta qualificação e, no entanto, diversas proposições apresentarem imperfeições formais ou de conteúdo. Além disso, não raro os textos incorrem em inconstitucionalidade e até invadem a competência de outros órgãos e Poderes.
“Eu não sei os equívocos de constitucionalidade são feitos deliberadamente. Mas tem algumas coisas que são posições pessoais do parlamentar ou do partido. E aí, mesmo que a consultoria esteja disponível para assessorar tecnicamente, eles não querem, e insistem em fazer de tal forma”, observa.
Heloisa dá como exemplo um projeto do senador Aécio Neves (PSDB-MG) que trata da criminalização do adulto que aliciar ou envolver adolescente na prática de crimes – algo comum no Brasil, quando pessoas adultas transferem para os menores a responsabilidade por atos criminosos. Trata-se do Projeto de Lei do Senado 219/2013, que inclui a corrupção de menores no rol dos crimes hediondos, eliminando “liberalidades” como progressão de pena. Heloisa diz que a Abrinq vê com simpatia a iniciativa, mas que ela precisa passar por “ajustes de terminologia”.
A especialista observa que, em alguns casos, adolescentes já são considerados “corrompidos” devido à vida que levam, e isso seria motivo para amenizar punições para adultos. Ela relata ainda que o senador José Pimentel (PT-CE) apresentou texto substitutivo para agravar a pena também para os adolescentes infratores.
“As duas coisas juntas enfraquecem a primeira [proposta, de Aécio]. Aí, nós fomos conversar com vários senadores, inclusive com a assessoria do senador José Pimentel, e eles disseram pra gente que era uma visão pessoal do senador, e não uma visão do partido. Então a gente percebe que há algumas coisas… ou eles assumem compromisso de campanha, ou o partido dá um direcionamento, e eles fazem aquilo independentemente da consultoria. Aliás, eu acho que eles usam muito pouco essa consultoria, que é extremamente qualificada”, acrescentou, sugerindo como filtro inicial para o processo legislativo a não aceitação de projetos sobre temas já identicamente tratados em matéria já em tramitação.
Para Heloisa, o excesso e a falta de critério na apresentação dos projetos leva à perda de visibilidade das prioridades – no caso, a problemática da criança e do adolescente, propósito do Caderno Legislativo. “Todo mundo sabe que definição de currículo escolar é uma atribuição do MEC [Ministério da Educação]. Então, por que são aceitos projetos de lei que alteram currículo escolar? Não faz sentido. Isso é atribuição do Executivo”, critica a especialista, para quem uma demanda reprimida nas comissões temáticas são decorrência frequente desse volume de proposições apresentadas.
“Na CCJ [Comissão de Constituição e Justiça] da Câmara, tem mais de 500 projetos que tratam de criança e adolescente aguardando para entrar na pauta, ou para receber relatoria”, lamenta.
Conheça algumas proposições monitoradas pela Abrinq:
1. Proposta de Emenda à Constituição 15/2015, da deputada Raquel Muniz (PSD-MG): inclui na Constituição os dispositivos do Fundeb para tornar permanente o financiamento. Como a Abrinq vê a proposição: favorável, pois o Fundeb possibilita que os municípios incapazes de investir o valor por aluno fixado anualmente recebam a complementação da União. “Esse fundo é imprescindível para o Brasil alcançar as metas do Plano Nacional de Educação”, afirma a entidade.
2. Projeto de Lei 4.968/2016, do deputado Luiz Lauro Filho (PSB-SP): altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para reduzir a jornada de trabalho para a mãe lactante até seis meses de vida da criança. Como a Abrinq vê o projeto: favorável, pois está de acordo com a realidade da maioria das empresas no Brasil, que não dispõe de berçário no local. “Com a redução de 1 ou 2 horas da jornada, a mãe é estimulada a realizar a amamentação exclusiva nos seis primeiros meses do bebê, seguindo recomendação da Organização Mundial da Saúde”, declara.
3. Projeto de Lei do Senado 217/2015, do senador Roberto Rocha (PSB-MA): pretende dobrar o repasse de recursos para a alimentação escolar em municípios de extrema pobreza (30% ou mais da população com renda per capita familiar de até R$ 77). Como a Abrinq vê o projeto: favorável com ressalvas, pois a entidade defende que sejam incluídos os municípios em situação de pobreza, ampliando o número de crianças e adolescentes a serem beneficiados;
4. Projeto de Lei do Senado 193/2016, do senador Magno Malta (PR-ES): inclui o “Programa Escola sem Partido” na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Como a Abrinq vê o projeto: desfavorável, pois é inconstitucional violar o direito à liberdade de manifestação do pensamento, impedir o pluralismo de ideias, vulnerar o princípio da igualdade e colocar os docentes sob constante censura;
5. Proposta de Emenda à Constituição 18/2011, do deputado Dilceu Sperafico (PP-PR): altera o artigo 7 da Constituição para autorizar, sob regime de tempo parcial, o trabalho a partir dos 14 anos de idade. Como a Abrinq vê a proposição: desfavorável, porque além de ser uma cláusula pétrea a proibição de trabalho a menores de 16 anos (exceto na condição de aprendiz), lugar de adolescente é na escola e/ou realizando atividades culturais, esportivas e outras que complementem seu desenvolvimento.
Assista ao vídeo de apresentação do Cenário da Infância do Observatório da Criança e do Adolescente: