Edson Sardinha
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Depois de se notabilizar, ainda nos anos 60 e 70, na luta contra a ditadura e na denúncia dos crimes do esquadrão da morte, o atual vice-prefeito de São Paulo, Hélio Bicudo, se diz decepcionado com a postura do atual governo em relação à divulgação do arquivo da Guerrilha do Araguaia. No ano passado, sentença da juíza Solange Salgado, de Brasília, determinou a indicação de sepultura, a expedição de atestado de óbito e a exibição de documentos das vítimas da guerrilha, ocorrida há 32 anos no sul do Pará. O governo recorreu da decisão. Criou-se, então, uma comissão interministerial para determinar a localização dos restos mortais das pessoas desaparecidas durante o movimento deflagrado pelo PCdoB. “São crimes imprescritíveis, ou seja, são crimes que continuam existindo hoje. Uma coisa é ligada a outra e, por isso, não se quer fornecer dados mais elucidativos daquilo que aconteceu no caso da Guerrilha do Araguaia e de outras eliminações durante a ditadura militar”, critica. Publicidade
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Bicudo faz menção ao secretário nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, defensor histórico da abertura dos arquivos. “Ele esteve empenhadíssimo quando estava do outro lado da cerca. Deveria continuar empenhado no sentido de que isso fosse aberto”, disse. O ex-deputado não quis falar do caso Waldomiro Diniz – que lança suspeitas de negociatas com bicheiros dentro do Palácio do Planalto – nem da aliança do PT com o PMDB. Bicudo pode ser trocado por um peemedebista na chapa de Marta Suplicy, que tenta a reeleição em outubro. PublicidadeCongresso em Foco – Os cinco pontos considerados prioritários pelo governo na reforma do Judiciário tornam o Poder mais transparente e mais ágil? Hélio Bicudo – Entre esses cinco pontos, tem algumas coisas interessantes e outras absolutamente desaconselháveis. O controle externo do Judiciário e do Ministério Público, por exemplo, fere o princípio constitucional da separação dos poderes, porque se está desconstituindo um poder à medida em que se põe outro poder acima dele, com a possibilidade inclusive de punição para juízes e promotores públicos. Esse ponto, da maneira que está sendo discutido, não passa no Supremo Tribunal Federal. É evidentemente inconstitucional. “(O controle externo) da maneira que está sendo discutido, não passa no Supremo Tribunal Federal. É evidentemente inconstitucional”
Não existem motivos peculiares para esta unificação no Brasil, a não ser que se queira fazer aqui o que existe em outros países, como a Itália, onde a carreira do Ministério Público e da magistratura é uma só. Lá os membros do MP passam ao Judiciário, os do Judiciário passam ao MP, até atingirem a posição final de magistrado da corte de cassação ou do superior tribunal. Não sei se essa solução seria recomendável, porque não é da nossa tradição, onde prevalece o critério da dualidade, ou seja, o tratamento de carreiras distintas. O MP independente e fiscalizador, tal como hoje, é muito mais importante para o bom desempenho do Judiciário. Um terceiro item na lista de prioridades do Ministério da Justiça é a instituição da quarentena, período em que magistrados e membros do Ministério Público não poderão exercer a advocacia na área de atuação. Que vantagem essa proposta traz? Isso dificulta o tráfico de influência, porque um membro do Ministério Público ou da magistratura recém-saído tem um horizonte de conhecimentos muito próximos que possibilitam a execução de lobbies. Se esses lobbies levam à não aplicação do ideal de justiça, é outra coisa. O problema é que, a continuar existindo, eles podem ou não ter sucesso. É importante essa quarentena, assim como já existe para a diretoria do Banco Central, para evitar uma certa contaminação de interesses. “(A quarentena) dificulta o tráfico de influência, porque um membro do Ministério Público ou da magistratura tem um horizonte de conhecimentos que possibilitam a execução de lobbies” O governo propõe a federalização dos processos de crimes contra os direitos humanos, ou seja, eles passariam para a Justiça Federal e o Ministério Público Federal. O que muda na prática? Já participei da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e percebi a dificuldade que existe para a União recolher as informações solicitadas por esses órgãos internacionais. Os estados, ou porque não se interessam ou porque querem pôr uma cortina de fumaça sobre as violências praticadas dentro da sua competência, não liberam as informações. Se você não tem atuação do governo federal, as coisas desaparecem. Essa proposta, porém, traz um problema: quais os crimes contra a humanidade que devem passar para a Justiça Federal? Da forma que está, fica ao inteiro arbítrio do Procurador-Geral da República avocar ou não determinado procedimento a pedido da parte. É preciso que se encontre um mecanismo menos suscetível a subjetivismos. As defensorias públicas, apesar de estarem previstas na Constituição, ainda estão longe da realidade brasileira. A reforma do Judiciário avança nesse aspecto, ao propor a autonomia? Sou inteiramente favorável à autonomia das defensorias públicas. Embora a Constituição seja claríssima no sentido de que é uma obrigação dos estados constituírem suas defensorias públicas, os estados não as têm. O senhor critica a instituição de um controle externo para o Judiciário, que seria inconstitucional. Que mecanismo poderia ser adotado para tornar o poder mais transparente? Nossa Justiça é por demais centralizada. Por que não descentralizar tanto a Justiça de primeira quanto a de segunda instância? São Paulo é uma cidade que comportaria tranqüilamente 500 distritos judiciais. Isso aproxima o juiz e o promotor público do povo. As pessoas que moram naquele distrito sabem quem é o juiz e o promotor e o que eles estão fazendo. Esse distanciamento dos juízes e dos promotores em relação às partes é um dos fatores da má distribuição da Justiça neste país. Há uma obrigação constitucional de que os juízes e promotores morem nas suas respectivas comarcas. Se percorrermos as comarcas vizinhas à cidade de São Paulo não encontraremos muitos juízes lá. Eles moram na capital e vão apenas dar o expediente lá. Há um distanciamento e uma violação da Constituição. “O distanciamento dos juízes e dos promotores em relação às partes é um dos fatores da má distribuição da Justiça neste país” Que reflexo isso traz para o cidadão comum? Isso transforma um trabalho de conteúdo humano muito profundo em um trabalho puramente burocrático. O juiz vai lá, despacha os processos, não conhece ninguém, nem é conhecido por ninguém. Não há nenhum controle da atividade dele, o que dá margem também para a corrupção. Não tem cabimento esse imenso Tribunal de Justiça de São Paulo com cento e tantos desembargadores. Por que não se acaba com o tribunal de alçada e se criam tribunais nas cidades, aproximando as pessoas do Poder Judiciário. Isso é fundamental para o bom exercício da magistratura. A reforma do Judiciário, em discussão no Senado, peca por não atingir esse ponto? Exatamente. Passaram por cima disso. Não tem nada a respeito. São pontos importantes que não podem ter a solução que se pretende dar a eles. Tem que se pensar um pouco mais a respeito desse tipo de solução. São pontos importantes, como a transformação do Supremo Tribunal Federal (STF) num tribunal constitucional. Em vez do sistema atual de vitaliciedade dos juízes dos tribunais superiores, os ministros teriam um mandato, que pode ou não ser renovado. Haveria um controle maior da atividade dos juízes dos tribunais superiores. A súmula vinculante afronta esse caráter mais humanizado que o senhor defende para o Judiciário? Ela engessa o poder criativo do juiz. Na verdade, é ele que faz a lei, ao interpretá-la de acordo com as cores locais. É preciso morar na comarca, sentir as pessoas. Dentro desse panorama, ele poderia fazer no processo penal a individualização da pena, que está prevista na lei. Hoje, há um juiz que recebe a denúncia, outro que ouve os réus, um terceiro que ouve as vítimas, um outro que ouve as testemunhas, um quinto que examina as provas e outro magistrado que decide. Quer dizer, eles não decidem tendo em vista as pessoas envolvidas. Decidem de acordo com o que está no papel. “(A súmula vinculante) engessa o poder criativo do juiz” O PT sempre teve no Ministério Público um aliado. No último ano, principalmente por causa das investigações sobre o assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel, houve uma troca de acusações entre o partido e membros do MP. Está faltando maturidade a uma das partes ou Executivo e Ministério Público são realmente incompatíveis? Muitas vezes há uma imaturidade dos jovens promotores, que gostam de holofotes e mídia e que atuam, em alguns casos, negando aquilo que é um princípio fundamental para o Ministério Público, que é a unicidade de sua atuação. Para que serve o procurador-geral de Justiça? É um homem com mais experiência, tato e conhecimento, que deveria, no caso de haver um problema de questionamento sobre a atuação do chamado promotor natural, avocar o procedimento. Examinar aquilo que está acontecendo, tomar as providências cabidas e, em seguida, enviar o resultado ao Conselho Superior do Ministério Público. Hoje, se um promotor é desligado pelo procurador-geral da Justiça o processo vai imediatamente para o Conselho Superior. Se o procurador não tiver maioria, ele perde. Por isso, o procurador-geral de Justiça acaba não fazendo esse papel do bom varão, do homem mais experiente, na aplicação justa da lei. “Muitas vezes há uma imaturidade dos jovens promotores, que gostam de holofotes e mídia” Mas o PT também mudou em relação ao Ministério Público? Acho que não, porque continua confiando no MP. O Partido dos Trabalhadores continua contrário à Lei da Mordaça. Não tem o menor sentido proibir o contato com o público através da imprensa, para elucidar problemas e até defender-se daquilo que pode ocorrer em virtude de uma atuação que você toma. O governo tem sofrido críticas por resistir à divulgação do arquivo sobre a Guerrilha do Araguaia. Essa manifestação não contraria o passado do PT? Nesse ponto dos crimes praticados pela ditadura militar, o Brasil ficou muito aquém dos ideais de Justiça. Tivemos uma Lei de Anistia que foi interpretada da pior forma. Não está dito nela que é uma lei de duas mãos. Anistiar os torturadores foi uma interpretação para acalmar a área militar. Não se apurou nem se puniu aqueles que mataram e torturaram durante a ditadura militar. Ao contrário da Argentina, onde vários generais ainda estão cumprindo pena por causa de inúmeras mortes, atos de tortura e violações. Aqui não se fez nada. E se quer continuar a não fazer nada. Impedir o acesso aos documentos que dizem respeito a uma guerrilha que aconteceu há trinta anos e não conceder às famílias a possibilidade de encontrar os restos mortais de seus parentes não se coaduna com a orientação firme no que diz respeito aos direitos humanos. “Não conceder às famílias a possibilidade de encontrar os restos mortais de seus parentes não se coaduna com a orientação firme no que diz respeito aos direitos humanos. Isso pra mim é uma decepção” A quem interessa essa postura do governo? Ele está cedendo a algum jogo de conveniência? Não sei. O ministro Nilmário Miranda (da Secretaria Nacional de Direitos Humanos) esteve empenhadíssimo quando estava do outro lado da cerca. Deveria continuar empenhado no sentido de que isso fosse aberto. Não tem sentido que não se apure, nem se punam os responsáveis pelas mortes e pelas torturas do tempo da ditadura militar, porque são crimes imprescritíveis, ou seja, são crimes que continuam existindo hoje. Uma coisa é ligada a outra e, por isso, não se quer fornecer dados mais elucidativos daquilo que aconteceu no caso da Guerrilha do Araguaia e de outras eliminações durante a ditadura militar. Por que essa apuração poderia atingir gente que hoje está do lado do governo? O PT tem uma postura muito clara com relação à defesa dos direitos humanos. Não sei se há um excesso de cautela para que essas coisas continuem na sombra como estão há tanto tempo. |
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