Ana Júlia Pinheiro* |
No final da noite de hoje, estejamos certos de que cem pessoas terão sido assassinadas no trânsito do Brasil. Insistimos, assassinadas. Vítimas da embriaguez de um motorista, de cidades que expõem a vida do pedestre, dos erros de projeto das estradas. O que chama atenção, no entanto, é a participação da conduta violenta nestes episódios. Estas mortes no trânsito são frutos de uma cultura de tolerância com os violentos, estejam eles motorizados nas ruas ou organizados em bandos para arrebentar freqüentadores de casas noturnas. Publicidade
Nossas vítimas são gente como o advogado Francisco Augusto Nora Texeira, de 27 anos, assassinado por um motorista que dirigia sua BMW a 170 km/h na ponte nova do Lago Sul, em Brasília, em janeiro deste ano. Ou 100 km/h acima da velocidade máxima admitida na ponte, que é de 70 km/h. Publicidade Poderia citar dezenas de outros exemplos de acidentes provocados pela estupidez, situações com as quais lidei em oito anos de atuação como jornalista focada na redução das mortes no trânsito. O que me falta é tempo para pedir autorização às famílias das vítimas e poder citar seus nomes. E dói muito saber que, só na individualidade da minha memória, há dezenas de casos idênticos ao que vitimou o advogado Francisco Nora Texeira. Afirmar que hoje serão cem assassinatos no trânsito soa mórbido, e até desumano, a quem desconhece a realidade do trânsito no país. No entanto, examinando as estatísticas, uma centena é na verdade um número conservador. PublicidadeNa rede pública, segundo o Ministério da Saúde, morreram 30.657 pessoas no ano passado, mas ainda há mais 20 mil pessoas que sofreram mortes imediatas, segundos após o “acidente”, que não aparecem nas estatísticas dos hospitais. Até o nome me incomoda. Sei que existem acidentes de trânsito, os especialistas relatam vários, mas nunca presenciei. Soa como se o substantivo “acidente” se prestasse para eximir de responsabilidade os indivíduos, os três poderes e os três níveis de governo. Longe de ser um problema brasileiro, as mortes no trânsito são uma epidemia mundial. O trânsito lidera as estatísticas de mortes violentas por causas externas, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Nas estradas e ruas dos cinco continentes morreram 1,2 milhão de pessoas em 2001, segundo a OMS, contra 600 mil vítimas de homicídios. O caso brasileiro concorreu de forma importante para as estatísticas da OMS. Além dos dados do Ministério da Saúde, há as mortes imediatas registradas pelos 27 Detrans e informadas ao Departamento Nacional de Trânsito (Denatran- Ministério das Cidades). Então, segundo os dados do Denatran-MCidades, a média é de 20 mil vidas perdidas no asfalto, todos os anos, entre 1998 e 2002. A precisão das estatísticas de trânsito está em processo de aperfeiçoamento, por meio de convênio firmado entre o Denatran e o Ipea. Não se pode hoje, por exemplo, somar os dois números, dos ministérios da Saúde e das Cidades, e afirmar que seriam 50 mil mortes/ano. Isto porque, desde a coleta dos dados, a forma de levantar os indicadores não está padronizada. Na falta de estatísticas aprimoradas, os especialistas adotam 45 mil mortes/ano como um número seguro. Ou seja, no futuro poderá ser cientificamente demonstrado que a realidade superou a estimativa mas, dificilmente, o número exato ficará abaixo deste patamar. A partir de hoje, Dia Mundial da Saúde, que a OMS dedicou ao trânsito, está aberta uma bela oportunidade para se repensar a maneira como nós brasileiros lidamos com esta epidemia. A proposta é de que se faça uma lista daquilo que cada um pode fazer, individualmente ou reunido em organizações, para se contrapor à violência no trânsito. Mudar de comportamento, por exemplo. Cobrar que as autoridades reprimam a incivilidade dos motoristas. E exigir que as cidades criem formas de proteger o pedestre. Mas por que deveríamos nos incomodar? Primeiro porque é uma expressão de violência que morde o calcanhar de todos nós – ninguém está imune. Segundo, porque a soma do que precisa ser feito vai impedir que nós brasileiros continuemos a protagonizar ou a sofrer os efeitos desta guerra interna. * Ana Júlia Pinheiro e o jornal Correio Braziliense receberam um total de onze premiações pela série de reportagens conhecida como Paz no Trânsito. Os textos para esta seção devem ser enviados, com no máximo 4.000 caracteres e a identificação do autor (profissão e formação acadêmica), para congressoemfoco@congressoemfoco.com.br |
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