Para o deputado José Eduardo Cardozo (PT-SP), a Câmara caminhará para a pior crise de sua história caso não consiga um nome de consenso para a sucessão do presidente Severino Cavalcanti (PP-PE). Cotado para assumir a presidência da Casa numa eventual renúncia ou cassação de Severino, Cardozo defende a indicação de um líder que tenha trânsito livre entre os partidos da base aliada e da oposição, e que não esteja envolvido com os recentes escândalos políticos do país. Credenciais que, na prática, ele mesmo apresenta.
“Se não tivermos a grandeza de buscar um entendimento entre todas as forças políticas em torno de uma pessoa que possa ser avalista desse pacto, vamos entrar numa rota de crise como o Legislativo nunca viveu na história brasileira. É momento de termos uma grande responsabilidade e a clareza de que a vaidade e a disputa política devem ceder espaço à busca do entendimento”, diz. Nesta entrevista exclusiva ao Congresso em Foco, o deputado defende a renovação do parlamento nas próximas eleições e adverte: a mudança só será profunda se vier acompanhada de uma imediata reforma política.
Cardozo encabeça, ao lado dos deputados Sigmaringa Seixas (DF) e Paulo Delgado (MG), a lista dos candidatos petistas à sucessão de Severino. Para chegar ao terceiro cargo mais importante da República, o deputado paulista terá de combinar uma delicada equação. É que a simpatia que goza na oposição é resultado do mesmo comportamento que gera desconfiança no Planalto: a sua relativa independência em relação ao Executivo.
Vice-líder do PT na Câmara, faz questão de ressaltar sua convicção na inocência do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em relação às irregularidades assumidas por dirigentes do partido. “Exigir de um presidente da República, com a agenda e a distribuição de tarefas que tem, que ele saiba de toda as ações de cada membro de sua equipe é imaginar que ele seja uma pessoa onisciente. A onisciência, porém, não é uma qualidade humana.”
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O petista, porém, prefere não antecipar o seu voto quanto ao futuro político do deputado José Dirceu (SP), ameaçado de cassação. “Do ponto de vista político, não há dúvida de que ele teve responsabilidade. A questão que se põe em relação a José Dirceu é fática. Qual é o ato que o responsabiliza? Essa é a grande questão”, pondera. No início da década de 1990, Cardozo elaborou o relatório da comissão de sindicância do PT para expulsar o empresário Roberto Teixeira, compadre do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Suplente do partido na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Correios, o deputado conquistou nos últimos meses projeção de fazer inveja aos titulares da bancada. Além de constante exposição na mídia, ganhou a relatoria da Subcomissão de Contratos, responsável por analisar as irregularidades nas relações contratuais da estatal, e uma visão estarrecedora do processo de corrupção na empresa.
“Temos auditorias que mostram licitações conduzidas, aditamentos de contratos irregulares, superfaturamento de preços e todas as irregularidades possíveis e imagináveis nas relações dos Correios. Claro que nós estamos apenas começando a receber os documentos. Tudo leva a crer que nós temos nos Correios uma situação calamitosa do ponto de vista do destino do dinheiro público”, avalia.
Em seu primeiro mandato federal, Cardozo começa a ter, em Brasília, a projeção dos votos que o conduziram diretamente da Câmara Municipal de São Paulo à capital federal. Eleito em 2002 com 303.025 votos, ficou atrás apenas de Dirceu e do fenômeno eleitoral Enéas Carneiro (Prona-SP).
Congresso em Foco – A confirmação do empresário Sebastião Buani de que pagou propina a Severino Cavalcanti tornou insustentável a permanência do deputado na presidência da Câmara?
José Eduardo Cardozo – A situação de Severino está muito difícil de ser sustentada. Evidentemente que temos de ouvi-lo, para ver se ele consegue eliminar todas as dúvidas que possam existir em relação ao seu comportamento. Se ele não conseguir isso, é imediata a necessidade de se propôr a abertura de um processo de cassação e destituí-lo da presidência.
“Se não tivermos a grandeza de buscar um entendimento entre todas as forças políticas em torno de uma pessoa que possa ser avalista desse pacto, vamos entrar numa rota de crise como o Legislativo nunca viveu na história brasileira”
Qual vai ser o principal desafio do eventual sucessor de Severino?
O principal desafio começa na escolha do nome. Os partidos políticos devem se conscientizar de que não é hora de disputa. É hora de consenso. Ou seja, é necessário fazer um pacto no Legislativo para que as forças políticas possam acionar o funcionamento desse poder e garantir o procedimento das investigações e dos processos de cassação que vão ser colocados. Se não tivermos a grandeza de buscar um entendimento entre todas as forças políticas em torno de uma pessoa que possa ser avalista desse pacto, vamos entrar numa rota de crise como o Legislativo nunca viveu na história brasileira. É momento de termos uma grande responsabilidade e a clareza de que a vaidade e a disputa política devem ceder espaço à busca do entendimento.
“Se não conseguirmos um consenso, a crise vai se agravar de uma forma muito aguda. Tenho percebido um senso de responsabilidade muito grande nos líderes partidários da situação e da oposição na busca desse consenso”
Se não houver consenso em torno de um nome, como o senhor propõe, a crise vai se agravar ainda mais?
Se não conseguirmos um consenso, a crise vai se agravar de uma forma muito aguda. Tenho percebido um senso de responsabilidade muito grande nos líderes partidários da situação e da oposição na busca desse consenso. A escolha do sucessor de Severino Cavalcanti deve passar por este critério: pessoas que não estejam envolvidas com os atos sob investigação e que permitam ao Legislativo ter uma convivência democrática de todas as forças políticas.
Esse escândalo envolvendo Severino Cavalcanti reduz as chances dos deputados denunciados ao Conselho de Ética de escaparem da cassação?
Não vejo como uma relação de casos comunicantes. Cada caso deve ser tratado isoladamente, até para que não sejam cometidas injustiças. Severino Cavalcanti não deve ser confundido com os outros. O presidente que vier a sucedê-lo deve ter absoluta imparcialidade na condução do processo, fazendo com que as regras sejam respeitadas de maneira que não se faça nenhum tipo de acordo para ninguém ser cassado ou para que não se cometa injustiça.
Severino Cavalcanti não tem mais condições morais de comandar o processo de julgamento dos parlamentares envolvidos no escândalo do mensalão?
Tirando a hipótese de ele dar declarações que mostrem a sua absoluta inocência – o que acho difícil neste momento – não há condições de ele continuar presidindo a Casa.
O senhor é relator da Subcomissão de Contratos da CPI dos Correios. Que irregularidades contratuais já foram comprovadas na parte dos contratos firmados pela estatal?
As irregularidades nos Correios são muito fortes. Você vai encontrar ali, em primeiro lugar, um esquema de arrecadação de propina muito forte. Não dá ainda pra saber se é um esquema de propina centralizado ou se são vários esquemas que se somam. Que existem irregularidades gravíssimas nos Correios está muito claro. Temos auditorias que mostram licitações conduzidas, aditamentos de contratos irregulares, superfaturamento de preços e todas as irregularidades possíveis e imagináveis nas relações dos Correios. Claro que nós estamos apenas começando a receber os documentos. Tudo leva a crer que nós temos nos Correios uma situação calamitosa do ponto de vista do destino do dinheiro público.
Está caracterizado que Jefferson comandava esquema de corrupção na estatal?
Não saberia dizer se ele comandava todo o esquema de corrupção ou parte dele. Mas, a meu ver, Roberto Jefferson tem um envolvimento direto com o esquema de corrupção nos Correios. Mesmo porque ele próprio confessa que as indicações feitas pelos parlamentares – e há uma farta lista creditada ao deputado – têm o objetivo de arrecadar dinheiro para o partido. Na medida em que ele confessa isso, em que há a fala do Marinho (Maurício Marinho, ex-funcionário da estatal flagrado cobrando propina) na fita, revelando um grande esquema do qual ele faria parte, é impossível separar Roberto Jefferson da corrupção dos Correios. Agora, não dá pra dizer se ele era o único operador ou se existiam vários operadores. É uma questão que ainda temos de investigar.
O deputado Roberto Jefferson diz que as principais irregularidades cometidas nos Correios estão nas diretorias preenchidas por indicados do PT. Isso está caracterizado pela CPI?
Há indícios muito fortes de que diretores das áreas de Tecnologia e de Operações possam estar envolvidos. Não temos ainda a prova, mas os indícios de envolvimento são fortes.
Estão caracterizados o loteamento de cargos e o tráfico de influência nos Correios?
Estamos atrás disso ainda. A extensão das relações tem que ser medida e avaliada. Que há um esquema de corrupção é inegável. Ficou evidente que havia tráfico de influência, mas a extensão disso é muito difícil avaliar. Os próprios diretores dos Correios são suspeitos, a meu ver. Mas ainda faltam provas para estabelecer essa relação, o que não afasta a necessidade de eles serem investigados e de estabelecermos um nexo entre essas irregularidades.
Em entrevista ao Congresso em Foco, o deputado Gustavo Fruet (PSDB-PR), disse que dificilmente a CPI conseguirá revelar todo o esquema que está sendo investigado. As irregularidades, segundo ele, teriam sido cometidas por profissionais. O senhor concorda com ele?
Concordo, porque se trata de uma questão imensa. Algumas delas não vão ser resolvidas no prazo que temos para terminar os trabalhos, sobretudo a questão da quebra dos sigilos no exterior, que é um processo demorado. Há situações que precisam ser objeto de investigação e que dificilmente poderão ser concluídas no tempo da CPI. É muito importante que a CPI, ao não conseguir terminar a investigação, reúna situações para que a Polícia Federal e o Ministério Público continuem a investigar. Ou ainda, que a partir da CPI dos Correios, uma outra CPI possa surgir para investigar os campos que nós conseguirmos delinear.
“É possível que dessa CPI (dos Correios) possam se desdobrar outras comissões parlamentares de inquérito com objetos específicos. Temos de deixar o caminho e a perspectiva a serem seguidos para a Polícia Federal e o Ministério Público”
O senhor se refere a que campos, especificamente?
Seja no que for, nos Correios, no IRB (Instituto de Resseguros do Brasil) ou nos fundos de pensão. É possível que dessa CPI (dos Correios) possam se desdobrar outras comissões parlamentares de inquérito com objetos específicos. Temos de deixar o caminho e a perspectiva a serem seguidos para a Polícia Federal e o Ministério Público. Esse é o papel.
O senhor tem absoluta convicção de que o presidente Lula não sabia das irregularidades cometidas supostamente por seus auxiliares e por dirigentes do PT?
Conhecendo o presidente Lula como conheço e pelos fatos já apurados, não há nada que demonstre que o presidente tenha participado de qualquer uma dessas ações. Acredito sinceramente que o presidente foi surpreendido da mesma forma que nós, deputados.
“Exigir de um presidente da República, com a agenda
e a distribuição de tarefas que tem, que ele saiba de
toda as ações de cada membro de sua equipe é
imaginar que ele seja uma pessoa onisciente.
A onisciência, porém, não é uma qualidade humana”
O fato de ele não saber de coisas que supostamente ocorriam em torno dele também não é da maior gravidade?
Se partirmos do pressuposto de que o presidente da República tem de saber tudo, a todo instante, poderíamos chegar a essa conclusão. Mas isso não é verdade. Temos inúmeras situações de nossas próprias vidas cotidianas em que pessoas do nosso mais próximo convívio praticam atos que nós desconhecemos. Exigir de um presidente da República, com a agenda e a distribuição de tarefas que tem, que ele saiba de toda as ações de cada membro de sua equipe é imaginar que ele seja uma pessoa onisciente. A onisciência, porém, não é uma qualidade humana.
Pelas investigações em curso, está comprovado o envolvimento do ex-ministro José Dirceu no pagamento irregular a parlamentares da base aliada?
Não temos nenhuma prova que ligue o deputado José Dirceu a um crime. O que se pode colocar no relatório é uma responsabilização política. Como ele foi articulador político do governo e presidente do PT por muito tempo, acredito que dificilmente nós poderemos deixar de responsabilizá-lo do ponto de vista político.
“As situações que envolvem José Dirceu até o momento sugerem apenas a responsabilidade política. Do ponto de
vista da responsabilidade probatória, até agora não temos elementos fáticos”
Responsabilizá-lo, no caso, com a cassação do mandato?
A cassação tem dois componentes: o político e o da prova. Primeiro, temos de verificar os fatos contra José Dirceu, garantindo a ele amplo direito de defesa, e, a partir daí, avaliar as condições políticas e as provas. Do ponto de vista político, não há dúvida de que ele teve responsabilidade. A questão que se põe em relação a José Dirceu é fática. Qual é o ato que o responsabiliza? Essa é a grande questão. Afirmar que é tão somente o fato de a coisa ter sido feita sem a ciência dele – Dirceu tinha de saber porque era o operador político do governo – implica uma responsabilização política, o que talvez não qualifique a quebra de decoro parlamentar. Agora, se for comprovado que ele mentiu, praticou algum crime, mandou ou, sabendo de um fato concreto, foi omisso, teremos aí um fato. Até este momento as situações não qualificam prova. Ele sabia do mensalão? Como ele não poderia saber? Tem prova de que sabia? Há prova de que ele foi favorecido pelo Marcos Valério na compra do apartamento da ex-mulher? Por aí não dá. As situações que envolvem José Dirceu até o momento sugerem apenas a responsabilidade política. Do ponto de vista da responsabilidade probatória, até agora não temos elementos fáticos. Vamos ver o processo no Conselho de Ética.
O senhor prefere não antecipar o seu voto?
Não vou antecipar. Eu quero aguardar o desfecho. Em todos esses processos, qualquer pessoa que prejulgar pode incidir em erro. O julgamento vai ser na hora do voto em plenário, se o processo chegar até lá.
“Nós (do PT) temos de ter mais firmeza na investigação dos fatos. No caso do Delúbio, demoramos muito. Havia uma confissão. Não era necessário investigar. Tínhamos de ter aberto imediatamente um processo contra ele”
O PT tem garantido amplo direito de defesa aos membros do partido acusados de envolvimento com o mensalão. Não há uma margem muito tênue entre o respeito ao direito de defesa e a conivência?
Enquanto ficar claro que é direito de defesa, é algo normal e saudável, até porque um partido não pode partir para a expulsão sem resguardar esse princípio. Em alguns casos, houve demora, ausência de investigação. Não que seja um erro definitivo. Nós (do PT) temos de ter mais firmeza na investigação dos fatos. No caso do Delúbio, demoramos muito. Havia uma confissão. Não era necessário investigar. Tínhamos de ter aberto imediatamente um processo contra ele, seguindo todas as cautelas legais e democráticas de ampla defesa. Acho que direito de defesa não é uma prova de corpo mole do partido. Mas, neste momento, poderíamos ter sido um pouco mais ágeis para mostrar com energia que defendemos a ética e não toleraremos a presença de ninguém que tenha participado de atos antiéticos ou ilícitos.
“Se conseguirmos canalizar toda essa energia para
a punição dos envolvidos e a reforma política, essa
crise terá vindo para o bem”
Há risco de não haver transformação na vida política do país mesmo após a revelação de todo esse escândalo?
Acho isso impossível. Não dá pra prever se as mudanças vão ser mais estruturais ou superficiais. Mas alguma mudança haverá. Se conseguirmos canalizar toda essa energia para a punição dos envolvidos e a reforma política, essa crise terá vindo para o bem. Se não conseguirmos fazer isso, terá sido uma crise com sabor de inutilidade.
Além da reforma política, essa mudança implica renovação dos membros do Congresso Nacional no ano que vem?
Deve haver uma renovação grande no Congresso. Se não atacarmos as causas que levam a essa estrutura, essa renovação não será verdadeira.
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